terça-feira, fevereiro 21, 2017

O Mundo (não) é dos espertos

6AM e estou a embarcar de volta à terra dos bifes. Nestes voos madrugadores, vou com priority boarding, para evitar stresses no embarque e dentro do avião. Luxos…

Concluído o meu embarque, formou-se uma fila junto ao portão que dá acesso ao avião. 80-100 pessoas alinhadas atrás de mim. Contudo, os mais atrasados a embarcarem viram uma nesga de oportunidade, quando lhes foi permitido formar fila ao lado da que já estava feita. Logística de classe do pessoal da GroundLink, que assim retirou a vantagem ao pessoal com priority boarding (e nestes incluíam-se deficientes físicos e pais com pirralhos).

Duas pensionistas começaram a aproximar-se sorrateiramente do portão. Subtilmente, como dois sapos com asas compradas no Lidl a tentarem passar despercebidos numa festa de libelinhas. 

Chega-se o Zé da GroundLink ao portão com o seu colete reflector, e elas já coladas. Para sermos profundamente honestos, é compreensível não reparar numa centena de madrugadores ao nosso lado a lançarem olhares fulminantes. Porém, os 6 passageiros que se encontravam à minha frente não se insurgiram com isto. Olhavam entre si, esboçavam um sorriso incrédulo. Assim sendo, pedi-lhes licença e dirigi-me às senhoras, perguntando-lhes se também tinham prioridade.

«Temos tanta quanto tu!»
Rufam os tambores: it’s on!
Seguiu-se o diálogo aqui apresentado.

«Ai sim? Então e as vossas malas vão para o porão? Deixe lá ver isso [cartão de embarque], talvez seja erro»

«Olha [risos] este deve ser do jet set. Estamos aqui porque nos mandaram para aqui! Olha pra este logo de manhã. Sai lá daqui, rapaz.»

«O rapaz pagou para estar aqui.»

«É VIP! Olha, é VIP!»

«£5. Sou VIP por £5 [começam a abrir o portão e a deixar as pessoas irem para o avião], e para as senhoras, sou eu e estes 100 que aqui estão atrás de mim.»

Reboliço, confusão. Passageiros incrédulos com a novela que assistem numa madrugada de 3ª feira. Dita a lógica e o bom senso que, assim que os portões se abrissem, eu deixasse que as 6 pessoas me passassem novamente para seguirem para o avião. Contudo, e vendo que não avanço, uma das pensionistas arrisca a vida, pega nas malas, empurra-me e segue para a pista na loucura da noite. A obesidade mórbida da 2ª pensionista não lhe permitiu ser tão lesta quanto a primeira, que já ia destacadíssima a fugir ao pelotão (prémio da combatividade 2017). Admirei-lhe a ousadia (mentalmente bati palmas à sexagenária), e após 3-4 passos mais rápidos, coloquei-me à sua frente.

«Mas quem pensa que é? Saia da frente!», ouvi eu enquanto (infrutiferamente) me tentava ultrapassar pelos flancos. As tentativas eram acompanhadas com indignações constantes: «Mas você sabe quem eu sou?! Sabe quem eu sou?!»
Fosse eu espertinho, e responder-lhe-ia «Não sei, talvez se a senhora fosse VIP, não me precisasse de perguntar.» 

De realçar que por esta altura já tinha direito a outro tratamento. O rapaz” passou a VIP”, e agora a “Você”, como nas novelas. Ao fim e ao cabo, uma montanha-russa de epítetos e emoções. Nisto, a dita senhora cravou-me as unhas no braço direito e berrou «Ai você não sabe com quem se está a meter! Não sabe, não!», e pumba!, começa a puxar-me e a empurrar-me. Tudo isto em andamento, meus senhores (chupa Cirque du Soleil!!).

Braço agarrado, puxado por trás, com uma velha aos gritos… no mínimo seria cartão amarelo. Reagi:

«Mas está-se a passar? Largue-me lá! Epá, largue-me.» Lá a consegui sacudir, e após nova tentativa: «Oi, não me volta a tocar, ouviu? Olha agora…»

E com isto, surge a surpresa da noite. Tal e qual aquele jogador que cai no relvado agarrado à cara quando lhe pisam o pé, a pensionista (que perdeu fôlego e já ia mais atrás) começa a gritar no meio da pista de aterragem, a bons pulmões:

«RACISTA! RACISTA DE MERDA! SEU RACISTA!!»

E foi nisto, atrás de mim, até ao avião. 
Ficaram-lhe com a bagagem, e ela continuava. 
Escada acima, e ela continuava. 
No avião, e depois de ser mandada calar pelo hospedeiro de bordo, continuava.
Após exultar de felicidade por estar duas filas à minha frente, foi novamente mandada calar com mais veemência. Aí acatou. Fez-se silêncio. Menos mal, que era cedinho e havia malta a querer ferrar uma galhada
.

Entretanto os outros passageiros passavam por mim e piscavam-me o olho, faziam-me um 👍 discreto, diziam-me “esteve muito bem”, “eu também reparei que elas se puseram à frente”, “que descaramento, fez bem”. Uma manifestação de apoio que só pecou por estar 10 minutos atrasada. É que estes bananas, que se acomodaram em serem ultrapassados por outros passageiros mais oportunistas, estavam agora (a posteriori) indignados e solidários com a minha causa. Um pouco à semelhança daquele pessoal que nunca vota mas que se queixa na mesma.  




Para os demais passageiros de outras raças que não a minha, que só ouviram a gritaria e as alcunhas carinhosas que me foram arremessadas, suponho que tenha sido anticlimático não se depararem com um passageiro de capuz branco ou com uma suástica tatuada no pescoço.

Levantámos voo. Uma hospedeira de bordo chegou-se perto, sorriu, agachou-se e pediu desculpa pelo sucedido. Confirmou-me o que todos já sabíamos: as ditas senhoras não tinham prioridade. Que era expectável e compreensível eu queixar-me da situação, e como tal deu-me os contactos (não os dela, isso sim seria tratamento VIP) para eu prosseguir com a dita queixa, caso assim o entendesse. Assegurou-me que não seria mais incomodado durante o voo. Equivocou-se. É que ao meu lado seguia um passageiro cujo ressonar levava a que se accionasse a luz do "fasten your seatbelts" de 10-10 minutos.


Entendamo-nos…
Não sou geriatrofóbico. Racista também não, e sexista então muito menos (nem podia, senão a mulher enxertava-me forte e feio lá em casa).

Não gosto de chico-espertismo. De gente que se mete no princípio de uma fila, que rouba o lugar do estacionamento, que chega no fim de uma festa/jantar e consome sem pagar, que põe cones a guardarem lugares, que só tira as gambas do arroz de marisco, que se encosta para não pagar bilhete no Metro, ou que estaciona em 2ª fila e desaparece. Ou de gente que diz estar atrasada para um voo só para passar à frente numa longa fila de aeroporto (o que, pasmem-se, aconteceu com uma outra passageira do meu voo que nos passou a perna a todos no controlo de segurança).

Ser conflituoso é um defeito, na grande maioria dos casos. É um traço da personalidade que, no entanto, nos prepara para os confrontos. Neste caso, a pensioportunista estava preparadíssima para me desarmar com o rótulo de "racista". Mas foi um tiro ao lado. Admitia "chato", "provocador", "impaciente". Igualmente aceitáveis: "nervoso" ou "picuinhas". É porque em boa verdade, quando nos sentimos injustiçados, ligamos menos aos toques decorativos da injustiça e mais ao conteúdo da mesma. Por isso quero lá saber se és velho, imberbe, preto, branco, às pintas amarelas, mulher, homem ou metade-metade. Não é justificação para ter mais direitos às custas dos outros, e não será isso que me impede de discutir com quem quer que seja. Não obstante, convenhamos que uma discussão com um instrutor de Jiu-Jitsu seria francamente mais esclarecedora. (N. do A.: "esclarecedora" é aqui aplicado como eufemismo para "dolorosa".)

E o que mais me preocupa é que há uma clara tendência para piorar com a idade. Ou seja, qualquer dia serei eu o pensionista a discutir num qualquer terminal de aeroporto. Serei eu (e os meus joelhos em fibra de carbono) a reclamar com a juventude sexagenária que se quer aproveitar da minha debilidade física e cognitiva (já patente, por sinal). Com a agravante que nessa altura farei uso do meu andarilho para acabar com a discussão mais rapidamente.

Sem comentários: